Lisboa, capital mundial do jazz
Os nova-iorquinos já o admitiram. Resta espalhar a notícia entre os lisboetas: algum do melhor jazz contemporâneo tem o selo Clean Feed.
Se eu afirmar que uma das melhores editoras de jazz do mundo, que está a fazer pelo jazz de hoje o mesmo que a mítica Blue Note fez pela vanguarda dos anos 50 e 60, tem a sua sede na Rua do Alecrim, a uns passos do Tejo, vão talvez olhar-me como lunático ou julgar que estou a levar longe demais o espírito Time Out Lisboa. Em Portugal é frequente que o reconhecimento das qualidades do que por cá se faz só ocorra quando alguém “lá fora” faz o elogio. Assim, se eu acrescentar que a Clean Feed foi eleita como uma das melhores editoras de jazz de 2007 em todo o mundo pelo jornal All About Jazz, de Nova Iorque, e que tem distribuição na França, EUA, Polónia, Noruega, Espanha, Japão, Itália, Alemanha, Canadá, Austria, Suiça e Inglaterra, talvez a frase de abertura comece a soar menos descabelada.
Pedro Costa, um dos mentores da editora, não se mostra muito surpreendido com o galardão da All About Jazz, “porque foi por achar que a Clean Feed poderia ter um percurso interessante e uma palavra a dizer em termos de edição internacional que tudo começou”. O que Pedro Costa não esperava foi o ímpeto que a Clean Feed ganhou: “Pensei que iriamos demorar décadas a chegar a este patamar se é que alguma vez isso iria acontecer. A coisa tem acontecido progressivamente, no primeiro ano editamos 2 discos, no segundo 6, no terceiro 9, no quarto 14, no quinto 21, no sexto 21 também e 33 em 2007”. O que é ainda mais notável é que esta cadência não tem comprometido a elevada fasquia de qualidade, como se pode comprovar ouvindo a última fornada.
O MI3 que está por trás de Free advice (*****) não tem Tom Cruise no elenco nem é a divisão da Millitary Intelligence britânica dedicada à investigação da música subversiva e desviante. Senão teriam de se prender a si mesmos, pois a música que praticam nem por um momento se conforma à ortodoxia e aos bons costumes. O cerne dos MI3 é o pianista grego (radicado nos EUA) Pandelis Karayorgis, que conta com a cumplicidade dos conhecidos Nate McBride (contrabaixo) e Curt Newton (bateria). A música dos MI3 é feita de esquinas abruptas, vazios imprevistos e construções que se diriam saídas de O Gabinete do Dr.Caligari. O piano angular e enérgico de Karayorgis é obviamente devedor das influências dos grandes mestres Thelonious Monk e Cecil Taylor (há quem complete a Pianíssima Trindade com Paul Bley, de quem Karayorgis foi aluno). Os temas de Free Advice são da autoria do pianista, mas há lugar para dois temas de Ellington e “Ankhnathon”, uma peça alicerçada sobre uma hipnótica sequência de cinco notas na mão esquerda, de outro pianista requintadamente esdrúxulo – Sun Ra.
Após Interface (também na Clean Feed), um CD em trio de tremenda intensidade, gravado em 2003 no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, o saxofonista norte-americano Steve Lehman regressou à Lusa Atenas, para registar Manifold (****), mais um fortíssimo disco ao vivo, novamente no âmbito do festival Jazz Ao Centro. O local foi desta feita o Salão Brazil e a companhia é da trompete de Jonathan Finlayson, do contrabaixo de John Hebert e da bateria de Nasheet Waits. Manifold é prejudicado pela acústica dura e estridente de uma sala que já deslustrara um pouco o magnífico CD do colectivo Four Corners, gravado no mesmo local (e também editado pela Clean Feed). Mas a acústica ingrata é um detalhe face à insuportável má-educação do público, que tagarela incessantemente como se estivesse num botequim e abate ingloriamente uma estrela à cotação do CD.
Dance of the soothsayer’s tongue (****), do New York Quartet do trompetista Dennis González, também testemunha um concerto em que a gravação não fez inteira justiça à performance. Desta vez a culpa não foi da acústica nem do público, mas de falha técnica, que fez com que ficassem registados apenas 34 minutos do concerto em 2003, no clube Tonic, em Nova Iorque. A instância da Clean Feed, González e o baterista Mike Thompson entraram em estúdio para complementar o que se salvou do Tonic. A singela formação trompete + bateria é bastante arriscada, mas os duetos não desmerecem da música registada no Tonic, em quarteto, com o sax tenor de Ellery Eskelin e o contrabaixo de Mark Helias. Num grupo do gabarito deste NY Quartet de González é difícil destacar um músico, mas seria injusto omitir que Mike Thompson prodigaliza ao longo do CD uma assombrosa masterclass de percussão.
Tony Malaby estreia-se na Clean Feed com Tamarindo (****). Malaby tem sido sideman regular de George Schuller, Mario Pavone, Satoko Fuji, Tom Varner ou Angelica Sanchez e já possui apreciável discografia em nome próprio. Apresenta-se agora em trio com William Parker no contrabaixo e Nasheet Waits na bateria. Estes dois portentos asseguram uma secção rítmica nervosa, irrequieta, borbulhante, que corre como uma torrente impetuosa semeada de turbilhões que se fazem e desfazem num ápice, e sobre a qual voga o saxofone (soprano ou tenor) de Malaby. O CD encerra com um tema de muito alta tensão, “Floating Head”, que acabará seguramente por converter os indecisos.
Para concluir convém dizer que a Clean Feed não se limita a produzir rodelinhas prateadas – embala-as em originais caixinhas de cartão de design esmerado, que são um deleite para quem também ouve com os olhos e os dedos.